Comunicação é uma tarefa árdua. Pode não parecer - nós instintivamente formulamos palavras em um determinado conjunto de sons ou combinações de letras que representam um idioma para sermos entendidos pelos outros. Fazemos esse exercício o tempo todo: nas conversas de mesa de bar, no trabalho, nas mídias sociais ou aqui, escrevendo este artigo. Parece fácil, mas não é.
Comunicar-se para fazer-se entender é muito difícil. Por exemplo, para a produção deste artigo, fiz um estudo minucioso do tema e planejei um roteiro de como abordar ele e construir uma base argumentativa - aqui, considero como as pessoas podem entender o que eu quero dizer, e faço uma organização das palavras que, posteriormente, passarão por uma revisão minha e da minha editora, sendo depois traduzido e publicado (momento onde você está lendo agora).
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Quem já assistiu algum dos meus vídeos pode perceber como me enrolo com as palavras de vez em quando. Ali, não tem roteiro. É uma escolha, um meio mais expressivo e genuíno de apresentar meus pensamentos ao público sobre determinado assunto. Funciona, mas pode melhorar - talvez, seria mais fácil ser entendido por mais pessoas se eu planejasse um roteiro bem detalhado. No momento que não o faço, assumo riscos: uma palavra mal colocada, um gaguejar, um silêncio abrupto porque minha mente entrou em branco, um xingamento ou até uma frase tirada de contexto e, convenhamos, alguém sempre pode olhar para o que você diz com maus olhos na era das mídias sociais.
Os desafios vão muito além da escolha de palavras ou uso, ou não, de um roteiro. Já dizia Marshall McLuhan, teórico da comunicação canadense, “o meio é a mensagem.” Este artigo, por exemplo, será um vídeo e terá uma escolha de palavras diferentes em determinados pontos enquanto tenta entregar a mesma mensagem - que será percebida de formas muito diferentes por públicos diferentes. Você que está aqui, lendo, provavelmente tem propensão a ficar neste conteúdo e ir mais a fundo nele do que alguém acostumado com materiais audiovisuais de entrega rápida como o Tik Tok ou a consumir informação dos 280 caracteres do Twitter. O meio é, muitas vezes, mais importante do que o conteúdo da mensagem.
Por fim, o mais óbvio, mas pouco comentado, é a temporalidade. Entender o contexto em que você se encontra, como um período onde duas grandes comunidades de TCGs tiveram reações negativas perante atualizações de banidas e restritas em seus respectivos jogos. Você sabe que, para bem ou mal, isso vai afetar a percepção sobre a sua mensagem - antecipá-la é assumir um risco, deixá-la para uma data posterior ou dentro da agenda é assumir outro. No ponto de vista comercial, qual vale mais a pena para você?
Pode não parecer óbvio, mas desde o começo deste texto sobre comunicação e citando até McLuhan, estou me referindo ao anúncio de Banidas e Restritas feita pela Legend Story Studios na última terça-feira (3 de setembro), considerada por alguns como a atualização mais importante da história de Flesh and Blood. E em meio a um período bem turbulento de manutenções nos TCGs, o jogo consegue sair bem de uma das mudanças mais bruscas já feitas em seus quase cinco anos de existência.
A comunicação foi a chave para a aceitação do público. Entender o contexto temporal, saber quais palavras usar, como manter a clareza das suas intenções e assegurar aos jogadores que, apesar de banirem até Art of War, considerado um dos grandes pilares do jogo, o futuro de Flesh and Blood é promissor, brilhante e melhor para todos. Não é uma tarefa fácil - e todo TCG deveria aprender algo com a LSS agora.
O Valor da Comunicação: Três exemplos, Três reações
Banlists são um tema frequente no universo dos TCGs. Alguns cards não saem como o planejado, alguma interação não foi pensada pela equipe de design e não importa o quanto uma equipe testa algo, eles não têm a mesma proporção de mente coletiva do resto da comunidade - Mark Rosewater, designer-sênior de Magic: The Gathering, comentou recentemente em seu blog que basta um minuto com a base de jogadores de Magic para jogar com um card com mais tempo do que toda a equipe de design.
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Essas atualizações vêm com um sabor amargo. Afinal, se um card precisa ser banido, é porque algo deu errado. E se algo deu errado, isso afetou o jogo e a satisfação do público com seu produto. A recente atualização de MTG, por exemplo, foi provocada principalmente pelo erro de design cometido com o card Nadu, Winged Wisdom na expansão Modern Horizons 3. Demais atualizações viriam em algum momento, mas o grande provocador dos banimentos em 26 de agosto foi a maneira como o card novo criou um deck cujo padrões de jogabilidade eram inaceitáveis do ponto de vista competitivo. As pessoas não estavam felizes.
Entre o fim de agosto e primeira semana de setembro, tivemos Banlists em três TCGs: Magic, Yu-Gi-Oh! e Flesh and Blood. Os três responderam a uma insatisfação pública com seu jogo, os três escolheram métodos diferentes de se comunicar.
Yu-Gi-Oh! seguiu seu padrão de banlists: “aqui estão as mudanças”. Ponto. Sem explicações, sem enxergar a necessidade para elas. “As mudanças são absolutas, o que pensamos sobre elas ou os motivos não importam”. É uma escolha, nesse caso, a escolha comum da Konami. É pragmático, e ouso dizer, é um consenso de que explicações vão causar mais dor de cabeça do que aliviar o problema vigente. A comunidade continua dividida, existe um consenso de uma parte que a atualização foi boa, mas não o suficiente e outros criticam como o modelo de negócios de YGO envolve esse ciclo constante de decks quebrando o Meta para serem corrigidos na próxima banlist.
O padrão Wizards of the Coast de comunicação sobre seu TCG é bem corporativista. Frases como “os números apresentaram uma grande taxa de vitória do deck” e sinônimos de “este não é o padrão que consideramos ideal para nosso jogo” são frequentes até na hora de falar do que é uma preocupação para os jogadores, mas que não será banido. Há muita impessoalidade e, ao ler o texto, você imagina alguém de terno e/ou um matemático de óculos e camisa social falando aquilo como se fosse um relatório. É uma escolha, apresenta seriedade e imparcialidade em detrimento de proximidade.
Dessa vez, Magic foi mais longe: assinaram um mea culpa. Michael Majors, designer-chefe de Modern Horizons 3, explicou o processo de criação de Nadu e onde erros foram cometidos - é um jeito de esclarecer como um card tão problemático nasceu enquanto também diz “olha, nós erramos, aprendemos com esse erro e tentaremos fazer diferente no futuro”. MTG, no entanto, é um jogo com muitas modalidades: a explicação de que tudo ocorreu por mudança de última hora provocada por preocupações com Commander deixou um sabor amargo. O que deveria ser uma explicação com a humildade de admitir a falha se transformou em apedrejamento público contra a equipe de design nas mídias sociais.
Por último, temos Flesh and Blood. O que a LSS fez com o anúncio de Banidas e Restritas - que, inclusive, foi de surpresa porque adiantaram a banlist marcada para outubro - foi condensar todas as informações em uma única mensagem e meio. Não foi só um trabalho de banir e explicar banimentos, foi dizer “é dessa maneira que queremos o nosso jogo e esses são os rumos que estamos tomando para tal”.
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James White como Mensageiro
A escolha do porta-voz, mensageiro ou o como preferir chamar é essencial na hora de dar certas notícias. Quando uma crise sem proporções se instaura, você provavelmente imagina os apresentadores e apresentadoras dos telejornais mais famosos do seu país dando essa notícia - e não é diferente para TCGs.
A atualização de 4 de setembro foi assinada por James White, criador de Flesh and Blood. James é amplamente conhecido na comunidade, aparece nos grandes eventos e é um excelente comunicador. Ele também tem outro detalhe importante: é apaixonado pelo próprio jogo, conhece bem o seu público e sabe falar com eles como parte da comunidade, com frases claras, evitando corporativismo onde este não é convidado. Novamente: James White sabe se comunicar majestosamente com fãs de TCGs.
Quando o jogo chegou ao Brasil, em setembro de 2022, um vídeo dele não parava de circular nos grupos de TCGs - nele, com um microfone na mão e suas roupas habituais, James afirmava como as pessoas precisavam de tempo para aproveitar cada produto. A mensagem ecoava na nossa comunidade como um contraponto aos lançamentos infindáveis de Magic que hoje beiram entre os 2 meses ou até 45 dias.
James White é um cerne de confiabilidade de Flesh and Blood para seu público. Se ele escreve, as pessoas confiam. Se ele é o autor, as pessoas acreditam mesmo que provavelmente esse texto também passe por revisores, parte da equipe de design e por uma equipe jurídica. É difícil construir essa relação com centenas de milhares de pessoas (e é muito fácil quebrar a confiança delas). Ele conseguiu, e assumiu o risco de ser o porta-voz da banlist mais marcante do jogo até agora.
Foi uma escolha consciente, talvez do próprio James ou da equipe de assessoria de Flesh and Blood. Outras figuras marcantes do design do jogo, como Bryan Gottlieb, poderiam assinar esse texto. Mas Bryan, enquanto bem-aceito como designer-chefe do jogo, não tem o mesmo carisma da comunidade que White cativou.
De onde viemos e para onde vamos: Condensando informações
Flesh and Blood ainda tem a vantagem de ser um jogo relativamente pequeno apesar de suas proporções. Quando você cresce ao nível do “Big three” dos TCGs, é comum os setores da empresa se dividirem até no mesmo departamento: a comunicação de bans pode trabalhar num ritmo diferente do de planejamento de eventos e/ou da publicação de textos sobre o design do jogo. O caso recente de Magic com a controvérsia da sua banlist se deu devido a um anúncio no meio de uma temporada de RCQs - uma falha de planejamento em alguma das pontas.
Por não ter tamanha proporção, FaB se dá ao luxo de condensar sua informação em fontes únicas. Você não precisa de três portais diferentes e três links diferentes para seus anúncios no mesmo dia - basta colocar tudo no mesmo lugar. Fica mais organizado, fica mais fácil de digerir, fica mais fácil de não perder os detalhes.
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Desde o primeiro parágrafo do anúncio, White deixa claro que não está ali para falar apenas de banimentos, mas também de para onde quer levar nosso jogo e do que o consumidor precisa saber antes de comprar os cards da próxima expansão. O que tem os bans como informação mais importante logo se transforma em um texto sobre a filosofia de design de Flesh and Blood - os princípios do jogo, como eles foram concebidos e seus propósitos, e como eles evoluíram e/ou se transformaram nesses cinco anos desde Welcome to Rathe.
Não demora muito até o texto anunciar quais são as mudanças fundamentais: há uma falha na maneira como o jogo se comporta hoje e o design de determinados cards que quebram a paridade de recursos de FaB, criando turnos altamente explosivos como os vistos com Zen durante a temporada inteira de Part the Mistveil - essas falhas vão de desencontro com um dos princípios fundamentais do jogo (recompensar boas decisões) e, portanto, precisa ser corrigida.
Em essência, o que o texto faz é admitir que Flesh and Blood passa pelo sinal dos tempos: mais cards são criados, novas mecânicas e heróis são necessários para manter o jogo inovador e alguns pilares antigos passam, com o tempo, a exercer uma função distinta da que era planejada originalmente. Art of War, o banimento mais marcante, era uma troca de recursos justa até não ser mais e oferecer card advantage com Blood Debt e com turnos de burst phase, termo dos MMORPGs para um curto tempo em que podemos maximizar recursos para causar muito dano - os turnos mais famosos do Zen que o colocaram na posição de Tier 0.
James explica, em seguida, como eles pretendem trabalhar nos próximos anos. Quais são os pilares da filosofia de design e o que eles pretendem priorizar na criação de novos cards, além de quais propostas apresentadas em 2019 continuam lá e como algumas delas se transformaram. Eles entenderam que havia um problema e decidiram agir ativamente contra ele - o ponto mais importante é como planejam os OTKs e os turnos de “burst”: você pode ter, mas precisa trabalhar mais para alcançá-los.
Primeiro, a filosofia, depois os banimentos
Com tudo detalhadamente explicado, White finalmente vai para o ponto que interessa a maioria dos jogadores: o que está banido. As explicações de cada card se resume, muitas vezes, em como elas se apresentam como problema para a filosofia e planejamento apresentado acima. Como algumas delas já não se encaixam mais porque existem heróis, cards e habilidades no jogo que “quebram” as restrições ou desvantagem inerentes delas, é uma explicação concisa e dispensa detalhamentos matemáticos - não é só porque Zen é o melhor deck, é porque Art of War ficou mais forte e vai continuar mais forte a cada ano.
Flesh and Blood tem uma lógica diferente da de outros TCGs contemporâneos em que preferem prevenir do que remediar com banimentos. Nadu + Shuko era um problema desde que o card foi revelado na temporada de prévias de Modern Horizons 3, Snake-Eyes já apresentava padrões problemáticos em Yu-Gi-Oh!. Algo poderia ser feito para prevenir as situações que eles criaram, mas não foi - ambas Wizards e Konami preferiram dar uma chance do jogo se adaptar ao invés de ir direto na fonte do problema - afinal, essas decisões afetam as vendas do seu produto.
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A LSS segue o rumo mais proativo. Não tiveram medo de banir Duskblade antes do lançamento de Tales of Aria. Não tem medo de banir Tome of Aetherwind porque “tem o Kano, mas também o novo Oscilio”, ou de lidar com Tome of Fyendal apesar de Dash I/O ganhar um produto novo dedicado a ela em outubro. Priorizam integridade antes dos números porque é assim que um jogo constrói boa relação e cativa a confiança do seu público-alvo - é assim que, quando erros acontecerem, a gestão de crise é mais fácil.
Podemos discutir as vantagens e desvantagens de cada uma das propostas e até fazer juízo de valores deles. Novamente, FaB é um TCG novo, a mesma insegurança que as pessoas tem dele não ter mais cinco anos é a mesma segurança de não ter tantas marcas e desapontamentos com o produto ao ponto de perderem a credibilidade no jogo. Magic não passa nesse teste porque tem 31 anos, Yu-Gi-Oh! existe desde 1999, a lua-de-mel acaba em algum momento e cicatrizes existem em qualquer relação de longo prazo.
É possível que o fim da lua-de-mel com FaB venha, é possível que uma hora o jogo cometa um erro que seu público não vai esquecer tão fácil - e uma sucessão de erros quebra a confiabilidade de qualquer jogador mais aguerrido. Da mesma maneira, é possível que o jogo não cometa esses erros porque TCGs mais antigos cometeram e há um aprendizado nisso - o criador de Flesh and Blood é um entusiasta de card games, é claro que ele tem noção de onde esses falharam e não quer repetir os mesmos erros, começando por ser mais proativo com banimentos.
Outra diferença que vemos ocorrer em outros jogos é a de antecipar problemas. Crown of Seeds foi banida para dar mais liberdade no design de heróis com talento de Earth, Tome of Firebrand e Cash In tomaram um martelo porque apresentam riscos de longo prazo - a LSS aprendeu que talentos tem mais riscos e ainda não souberam equilibrá-los muito bem e tirar cards que apresentam o mesmo potencial de disparidade de recursos que é um problema hoje significa não lidar com eles amanhã
“Você ainda pode jogar com Art of War”
White termina o texto com a seção “Their Legend Lives On” (suas lendas ainda vivem), uma referência ao formato Living Legend que começa a ganhar tração no cenário competitivo e onde qualquer herói, inclusive os que entraram no sistema de Living Legend, são válidos e com uma lista de banidas e restritas muito branda.
Art of War é um dos cards favoritos de muita gente. Os turnos de Zen, enquanto desagradáveis para o oponente, são muito divertidos para quem gosta de jogos explosivos. Heróis como Chane extraem um valor absurdo da staple de Arcane Rising - se despedir de peças tão fundamentais da história do jogo é difícil, e James reconhece isso.
Encerrar o artigo dizendo “você ainda tem um lugar para jogar com seus cards favoritos e ele não está tão distante de você” é uma maneira de consolar uma sensação amarga - qualquer jogador sabia que Zen sofreria outra intervenção antes de chegar aos 1000 pontos de LL, mas ele não foi o único afetado, e dar esse consolo enquanto também promove seu novo formato é uma boa estratégia. Marketeiro? Talvez, mas boa.
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Todo TCG pode aprender com esse exemplo
Flesh and Blood já cativa uma demografia notória de jogadores e se consolida gradualmente como um dos principais TCGs da atualidade. Em outubro, o jogo, que começou pouco antes da pandemia com a proposta de ser 100% presencial, completa cinco anos. Enfrentou o isolamento social, enfrentou os desafios de erros de design com Monarch, Tales of Aria e Everfest, e agora enfrentou um novo desafio em banir staples históricas do jogo em prol de um futuro mais otimista - e convenceu a maioria dos jogadores, por meio de uma comunicação clara, vinda da maior figura do desenvolvimento, e com os meios bem condensados para absorverem toda a informação, de que este futuro será brilhante.
Todo TCG, seja com um ano, trinta ou qualquer coisa no meio, pode aprender alguma coisa com esse anúncio. Todos podem aprender com algo que FaB está fazendo certo para cativar a confiança do seu público e, tal qual James White fez com os TCGs concorrentes, aprender com seus erros para fazer melhor e solidificar o seu espaço nesse mercado.
Eu não sei o que nos aguarda nos próximos cinco anos, mas enquanto a equipe de design e a comunicação trabalharem bem para manterem o jogo saudável e às claras sobre como as coisas funcionam, o futuro de Flesh and Blood e a confiança da sua base de jogadores no produto parece garantida. E isso é o que todo TCG deveria, em alguma escala, almejar.
Obrigado pela leitura!
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